Alcançar os requisitos de idade e contribuição para dar entrada na aposentadoria é um longo caminho a percorrer, que ficou ainda mais difícil após a reforma da Previdência, de 2019. Mas, em certos casos, o processo é até mais complexo, como quando os segurados se deparam com vínculos empregatícios antigos que ainda estão em aberto no sistema do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Como resolver a questão, que pode levar ao indeferimento do pedido de benefício? Como provar que a relação trabalhista não existe mais ou nunca existiu?
Izabel Silva dos Santos, de 54 anos, é agricultora na cidade de Santo Antônio, no interior do Rio Grande do Norte. O marido dela, José Antônio dos Santos, morreu em janeiro, aos 55 anos, num quadro severo de câncer. Por conta do tratamento médico, ele estava afastado do trabalho e recebia o benefício por incapacidade temporária, o antigo auxílio-doença. Após a perda do companheiro, Izabel deu entrada na pensão por morte, mas o pedido foi negado pelo INSS por conta de inconsistências no registro de José no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS).
Segundo o INSS informou à família, o cadastro dele tinha um vínculo trabalhista de 1988 ainda em aberto com um restaurante em Santos, no litoral paulista. A família procurou a empresa, para entender o que aconteceu, mas esta não existe mais.
Izabel diz que o marido nunca teve carteira assinada e sempre contribuiu para a Previdência Social como trabalhador rural. Na década de 1980, o casal passou três meses na capital paulista, onde José trabalhou como pintor e num açougue, mas sempre de maneira informal.
— Depois que o pedido foi negado, ficamos sem norte e sem saber a quem recorrer. Ele nunca trabalhou com carteira assinada. E a prova disso é justamente a carteira totalmente em branco — diz.
Presidente do Instituto Brasiliense de Direito Previdenciário (IBDPrev), Diego Cherulli diz que casos como esse são frequentes. Para Izabel, diz ele, resta procurar o Conselho Recursal da Previdência Social (CRPS). Há também outros problemas comuns que levam o INSS a negar benefícios, que o EXTRA apresenta abaixo.
Segundo Diego Cherulli, já existem normas que o INSS deve seguir quando um vínculo empregatício fica em aberto, e o segurado não consegue provar que este não existe mais ou nunca existiu.
Ele explica que, antigamente, no caso de trabalhadores urbanos, quando a pessoa tinha o tempo de contribuição exigido, mas um vínculo aparecia em aberto, o INSS considerava o fim da relação trabalhista na data da última contribuição. Mas, no caso dos trabalhadores rurais, o vínculo em aberto era uma justificativa para que o pedido fosse negado. Mas o cenário mudou em 2022, segundo Cherulli, quando o INSS publicou uma instrução normativa com orientações sobre os segurados rurais:
— Se o vínculo está aberto, o INSS deve considerá-lo até a data da última contribuição, como no caso do trabalhador urbano. E se o pedido cair em exigência, o segurado deve apresentar uma resposta em até 30 dias:
— Muitos servidores desconhecem a norma. Mas a pessoa não pode deixar de responder à exigência e até incluir documentos. Caso a negativa se mantenha, deve recorrer ao Conselho Recursal da Previdência Social.
Cenário parecido viveu a jornalista Inês Dell'Erba, de 60 anos. Em meados de 2019, ela procurou o INSS para se inteirar das contribuições e entender quanto tempo ainda faltava para que pudesse entrar com o pedido de aposentadoria. Na agência, ela foi informada de que uma empresa na qual trabalhou por oito meses, entre 1991 e 1992, não a havia registrado junto à Previdência Social.
— A empresa assinou minha carteira, tenho os contracheques que mostram todas os descontos previdenciários no salário, mas nunca fui registrada. E ela já faliu — diz.
Em casos como esse, a orientação é buscar toda a documentação disponível que comprove o vínculo empregatício e os descontos de contribuição, como contratos, carteiras de trabalho, contracheques, comprovantes de pagamento e até a declaração do Imposto de Renda. É o que recomenda a advogada especialista em Direito Previdenciário Jeanne Vargas, sócia do Vargas Farias Advocacia:
— E é possível pedir ao INSS uma justificação administrativa para ouvir testemunhas quando as provas documentais não são suficientes.
O trabalhador também pode ingressar com uma ação judicial contra o INSS para o reconhecimento do vínculo e das contribuições. Nessa ação, ele pode apresentar todas as provas disponíveis e solicitar que o juiz determine a inclusão do período de trabalho no seu histórico de contribuições.
O INSS deve considerar todas as provas documentais e testemunhais apresentadas, respeitando o direito do segurado. O trabalhador não pode ser penalizado por uma obrigação que não era sua. A responsabilidade pelo pagamento da contribuição previdenciária é do empregador, não do empregado. Qualquer falha nesse sentido não pode prejudicar o empregado, especialmente no momento de sua aposentadoria. dizem os advogados previdenciários.
Segundo o INSS, nestes casos é preciso ligar para a Central 135 e solicitar o acerto de vínculos e remunerações. A partir daí, automaticamente o sistema do Meu INSS, seja pelo site ou pelo aplicativo, vai mostrar ao segurado a possibilidade de pedir o ajuste, anexando os documentos necessários. Depois, o sistema envia as informações a um servidor que faz o acerto de vínculo.
O pedido de pensão por morte exige que a relação que existia entre o segurado e seu cônjuge até o óbito seja comprovada para que o INSS reconheça a união e o direito ao benefício. Na hora de requerer a pensão, o marido ou a mulher deve submeter pelo menos dois documentos de uma longa lista. Entre as provas aceitas, estão contrato da união estável, certidão de casamento ou de nascimento dos filhos e até informações financeiras que demonstrem a dependência econômica ou o compartilhamento do dia a dia, como conta bancária conjunta, declaração do Imposto de Renda ou contas de consumo da residência do casal.
No caso de quem é casado no civil — principalmente as relações mais longas —, há ainda a necessidade de que a certidão esteja atualizada (com o óbito averbado no mesmo documento). No entanto, segundo o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), um dos problemas mais recorrentes é a negativa ao pedido sem deixar que o cidadão comprove a união estável e a dependência econômica por meio de testemunhas, na chamada justificação administrativa. A etapa é demandada pelo INSS quando se entende que as provas documentais são insuficientes.
Segundo Alexandre Schumacher Triches, diretor do IBDP, outro problema recorrente é o indeferimento de benefícios a segurados rurais em razão de o cidadão não ter registro nas bases de dados do governo, principalmente as específicas — como a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) ou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) — e ter apenas alguns documentos comprobatórios da atividade rural. “Nestes casos, é preciso recorrer ao Conselho Recursal da Previdência Social e juntar documentos e testemunhas que comprovem a contribuição desse trabalhador, como as notas fiscais da produção que trazem os descontos previdenciários”, diz Triches.
Outra causa comum que leva ao indeferimento de benefícios é a chamada pendência extemporânea ou PExt. As empresas têm que fornecer mensalmente ao Ministério do Trabalho e Emprego e à Previdência Social todas as informações salariais de seus empregados, incluindo dados de horas extras e adicionais. Se o processo não acontece dentro do prazo, isso entra no sistema previdenciário com um indicativo de pendência, a PExt. O problema é que os períodos de contribuição que têm esse indicador não entram na contagem para a concessão da aposentadoria, o que acaba prejudicando o segurado. Mas há um caminho para resolver o problema: a pessoa precisa apresentar ao INSS um documento da época que comprove o vínculo, seja um contracheque, um contrato de trabalho, a própria carteira de trabalho. Isso tem mudado com o eSocial e o Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) digitalizado, mas muitos trabalhadores com vínculos mais antigos passam por esse problema.
O não reconhecimento de atividade especial — seja por insalubridade, periculosidade ou penosidade — também é frequente, segundo o IBDP. “O INSS é bastante rigoroso na análise deste direito, e o documento para comprovar este período é fornecido pelos empregadores, mas muitas empresas não têm o cuidado necessário ao preencher os dados, o que prejudica o segurado”, diz Triches. “O caminho acaba sendo procurar a Justiça, para que outros meios comprovem isso, como perícia.”
O diretor do IBDP também chama a atenção para indeferimentos automáticos feitos pela inteligência artificial que analisa os pedidos de benefícios, o chamado robô do INSS. Em geral, as negativas ocorrem por, no momento do requerimento, o segurado não ter sido alertado da necessidade de inserção de informações indispensáveis à análise. Por isso, é preciso atenção redobrada na hora de preencher as lacunas do pedido e submeter documentos: “As exigências são muito difíceis para um país que ainda tem restrições muito severas de acesso à internet. São questões complicadas para os mais vulneráveis. A automação dos processos tem ajudado muito, mas se a pessoa está excluída das bases de dados do governo, ela tem muito mais dificuldade”, conclui Triches.